No Dia Seguinte
Alvaro Henrique
Um quarto bagunçado:
Um pente com fios de cabelo dela,
Uma foto - eu e ela - no porta-retrato,
Livros e CDs e vídeos e partituras
E papéis e tudo-o-que-você-imaginar
Jogados por todo o quarto.
Um pijama e um vestido, foi o que ela deixou.
Um pijama e um vestido, foi o que restou.
Um pijama e um vestido, achei nessa zorra,
Meu souvenir do nosso amor.
Ah, merda! Ainda vou ter de lavar essa porra!
Porra, que luz tão forte!
Porra, esse vizinho só sabe ouvir música alta!
Porra, que cheiro de poluição!
Porra, que barulho! “- Ô seus merdas,
Seus piu-piu-pius chatos do caralho,
Vão cantarolar no ouvido da mãe!”
Porra, que céu brilhante que cega!
Porra, que céu azul bonito e alegre!
Como eu queria matar tudo o que é bonito e alegre!
O tempo
O tempo passa
O tempo passa bem
O tempo passa bem devagar,
Nem parece que é o mesmo tempo que passa quando estou com ela.
Não é.
Agora, conto os segundos.
Antes, perdia os minutos.
Meu desejo é só dormir
E esperar o dia de amanhã.
Só que chega o amanhã
E continuo querendo só dormir
Até chegar o dia de amanhã.
Não tenho vontade de fazer nada.
Meus queridos livros só me dão náusea,
Nem lembro mais como segurar uma caneta,
Meu violão já está com teia de aranha.
A TV não passa nada que presta.
Lá até vejo umas mulheres bonitas
Que só me lembram que a minha mulher
É muito mais bonita que todas elas.
O rádio só passa música horrível
Ou uns tin-tin-tins cantando o Rio de Janeiro.
Porra, o Rio é uma bosta!
É sujo, é traficante, é desigual,
É perigoso, é bala-perdida, é marginal!
Visionário foi JK. Já viu ele que tinha
Que sair logo daquela joça.
Olho de novo pro livro que estou lendo
(Na verdade é o livro da vez, pois lendo não estou)
Quando enxergo o violão ele parece suplicar:
“- Me toque, me toque, volte à sua bela canção tocar!
Por que não começa com um prelúdio de Bach?”
Mas meu morto coração implora: deixa pra lá!
Espere o amanhã, amanhã você a esquece,
Amanhã vai ser melhor.
Amanhã.
Ama.
Esquece o ama, se concentre em amanhã!
O glorioso amanhã.
O tempo
O tempo passa
O tempo passa bem
O tempo passa bem mais
O tempo passa bem mais devagar.
Penso em ligar para alguém.
Agenda.
Livros: prum lado, pro chão.
Agenda!
Letras, nomes, números, um problema:
Afinal, eu vou ligar pra quem?
Clarissa, Ludmilla, Joana,
Amanda, Bruna, Mariana?
Não.
Ligar pra quê?
Ligar e dizer o quê?
“- Alô, olha, eu estou deprê.”
Se liga, não existe isso, velhinho,
Você vai ter de aguentar isso sozinho.
Olho o calendário.
Só vou vê-la daqui a duas semanas.
Será que estarei vivo até lá?
Será que a escuridão vai me tragar?
Será que ao convite do álcool vou resistir?
Será que até lá vou rir?
Vou seguindo, dia a dia, trabalhando,
Escrevendo, lendo, tocando,
Sobrevivendo, como um zumbi.
Não como um zumbi, como amputado,
O que não é de se estranhar
Pois à metade fui cortado.
Mas vou vivendo, isso é certo.
Sigo como o poento caminheiro do deserto.
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