sábado, 20 de junho de 2009

Repertório de concerto

Amigo internauta,

Estão cada vez mais frequentes entre músicos profissionais e estudantes em vias de profissionalização discussões sobre o repertório presente nas salas de concerto. Boa parte dessas conversas mostram uma falta de rumo. Considero positivo esse momento de crise, e tenho feito algumas reflexões sobre o assunto que gostaria de compartilhar.

A meu ver, a origem dessa discussão está na mudança do papel que o músico erudito ocupa na sociedade. Durante a segunda metade do século XX, os grandes grupos musicais funcionavam como uma espécie de "museu da música", e tinham como principal objetivo preservar e divulgar grandes obras musicais da humanidade. O frequentador da sala de concerto via na experiência de ouvir uma Sinfonia de Beethoven algo similar a admirar a Mona Lisa de Leonardo da Vinci.

O solista e os pequenos grupos, por sua vez, eram os "profetas da cultura". Tal qual missionários, aproveitavam-se da sua mobilidade para difundir obras dos grandes compositores entre a população em geral, arrebanhando fiéis para a grande catedral da música erudita, a orquestra sinfônica.

Em alguns locais do mundo isso têm mudado. Na Europa, em especial na Alemanha (berço da maior parte dos compositores, orquestras e solistas de destaque), têm se tornado cada vez mais presente a noção de "cultura acessível". Grandes obras continuam em destaque, naturalmente. Porém, um concerto está buscando ser uma experiência mais agradável que densa intelectualmente. As apresentações estão tendo um caráter menor de "alimento para o cérebro" para proporcionar arte com prazer.

Nesse cenário, com frequência composições maravilhosas, quando juntas, acabam se ofuscando. Na visão anterior, da "música-obra", isso não era um problema, pois o público tinha a oportunidade de ouvir grandes composições de uma só vez. Mas, na "música-experiência", é um fiasco oferecer uma noite intolerável, mesmo com músicas fantásticas.

Isso não significa, no entanto, que sumiram das salas de concerto as obras de vanguarda. Pelo contrário, há uma aceitação nunca antes vista desse repertório. A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky (1882 – 1971) virou trilha sonora de filme da Disney (Fantasia). Pierrot Lunaire, de Arnold Schoenberg (1874 – 1951), está à beira de completar 100 anos de estréia com cada vez mais admiradores. A maior parte dos frequentadores das salas de concerto nasceu depois que a maioria dos compositores modernos faleceu, então já não são mais nenhuma novidade.

Entre os pequenos grupos e os solistas esse problema têm se mostrado ainda mais gravemente. Talvez porque o público de orquestra é de gente já "catequisada", enquanto o de pequenas formações é mais variado. Mas, de alguma forma, parece que todas as fórmulas conhecidas de programa têm mostrado graves falhas.

E aqui está o que vejo de mais belo nessa crise. Com o conceito atual de "música-experiência", o perfil do público e, principalmente, do próprio músico, estão ocupando um papel muito mais determinante no sucesso do evento musical que a fé cega na tradição e na autoridade.

Imagino que proporcionar uma experiência musical positiva seja similar a receber seus amigos em casa. Naturalmente, elas são pessoas com afinidades com você. Para agradar, basta oferecer a eles coisas que você gostaria de receber.

O público de um solista ou um grupo de câmara é predominante de pessoas que compartilham diversas coisas com o(s) músico(s). Basta oferecer, então, o que o intérprete gosta pra elas.

Isso significa, com frequência, jogar no lixo o que diversos dos professores e das autoridades musicais disseram toda a vida. A realidade deles era outra. Há 30 anos atrás as pessoas eram mais radicais no seu gosto musical, e era comum chegar às vias de fato tal qual as torcidas de futebol ainda fazem hoje em dia. O público de música erudita e o de música popular era como água e óleo.

Hoje um fã de jazz planeja com meses de antecedência uma viagem pra ver uma ópera. Um adolescente têm no seu Ipod rock e música erudita em igual quantidade. A mulher que no fim-de-semana sai pra dançar está com o rádio do carro sintonizado numa rádio de música erudita.

E esse não é só o perfil de quem apenas ouve música erudita. Mais que isso, os músicos profissionais de hoje também são assim, inclusive os músicos populares.

Hoje se vê diversas coisas que pareciam impensáveis. Por exemplo, no vídeo abaixo temos a principal orquestra alemã, a Berliner Philarmonik, regida por um dos principais músicos atuais, Daniel Barenboim, tocando no seu próprio teatro, um arranjo de uma canção popularizada por Carmen Miranda, com toda a sonoridade e mis-en-scène de uma orquestra de cinema.



Diversos dos "pode" e "não pode" falados quando surgia esse assunto não têm mais nenhuma razão de ser, portanto.

Acredito, então, que o segredo está em fazer uma apresentação que represente aquilo que você gostaria de ouvir, atrair para a platéia pessoas como você, e tocar da melhor maneira possível.

Parece simples, mas pra alcançar esse objetivo é preciso muita reflexão. Acho muito importante o músico pensar sobre algumas questões, como "por que me tornei músico?", "o que tenho a compartilhar com as pessoas?", "quais foram as apresentações e gravações que mais me emocionaram?", "qual a melhor experiência musical da minha vida?", etc.

Só com uma boa dose de auto-conhecimento é possível tocar o que você realmente gosta, não o que botaram na sua cabeça que você era obrigado a gostar. Tocando o que você gosta, é certo que você oferecerá uma ótima experiência musical na sua próxima apresentação.

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