Tomo a liberdade de reproduzir texto de Marcelo Coelho publicado ontem na Folha, que comenta do descaso à obra de Franz Joseph Haydn (Rohrau, Áustria, 31 de março de 1732 — Viena, 31 de maio de 1809.
"MARCELO COELHO
Haydn
Ele foi esmagado, quem sabe, pela ideia de que todo gênio precisa ser incompreendido |
POBRE HAYDN! Comemoram-se os 200 anos da morte do grande compositor. Embora sua genialidade não dê margem a dúvidas, ninguém ignora o fato de que seus discos vendem pouco, e que o público de concertos foge dele.
Mozart e Beethoven, mais ou menos seus contemporâneos, garantiram seu lugar na posteridade. Mas Haydn... quem liga para ele?
Mário de Andrade, na sua "Pequena História da Música", deu uma chave para o mistério: sendo certamente um gênio, Haydn tinha também um lado "bocó".
Talvez os seus retratos reforcem a impressão. Ao contrário da cabeleira torturada de Beethoven, ou da placidez seráfica de Mozart, o rosto de Haydn transmite uma imagem comum, objetiva e saudável dentro da peruca branca setecentista.
A personalidade dele, pelo que se sabe, foi a menos neurótica possível. Os que conviveram com Haydn são unânimes em registrar sua afabilidade, seu bom humor, sua modéstia.
Pobre Haydn! Foi esmagado, quem sabe, pela ideia romântica de que todo gênio precisa ser incompreendido e sofredor.
Outro motivo leva Haydn a ser um insucesso de público: ele compôs demais. Beethoven escreveu nove sinfonias, o suficiente para que conheçamos cada uma delas: sua fisionomia, seu caráter e estado de espírito.
O que fazer, entretanto, diante de um músico que fez 104 sinfonias? Não sei quantos quartetos de cordas, junto com uma avalanche de sonatas? Na maioria, o padrão de qualidade é tão alto que as escolhas se tornam difíceis.
Desse modo, ao contrário de Mozart, que tem nas sinfonias 40 e 41 um ponto de referência sólido no repertório de concerto, não existe sinfonia de Haydn, por mais genial que seja, capaz de competir com tais celebridades.
Ouço às vezes um programa disponível na internet (http://sites. radiofrance.fr/francemusique/ em/critiques/) que equivale a uma verdadeira mesa-redonda de futebol. Críticos de música clássica se defrontam, às cegas, com várias versões de uma mesma obra, e são encarregados de decidir qual a melhor. Analisando uma sinfonia de Haydn, chamada "Surpresa", os participantes desse programa chegaram perto de outra possível solução para o problema da injustiça que pesam sobre o compositor até os dias de hoje.
Ainda que não pareça, Haydn costuma ser muito mal tocado. Nunca "parece" mal tocado porque, havendo suficiente afinação na orquestra, seus temas são sempre claros e acessíveis. Uma superfície de simetria e consonância torna sempre satisfatório o que se escuta. Mas é muito fácil perder o interesse pelo que acontece, à medida que a música se desenvolve.
Fica evidente, em várias interpretações de sua obra, o grau de automatismo, de desatenção, de instrumentistas e maestros com respeito ao que ele escreveu. É como se os intérpretes deixassem a música ir adiante, sem prestar contas do equilíbrio, complicadíssimo, que existe entre a variedade e a unidade na música de Haydn.
Para o ouvinte, o problema se repete. Podemos simplesmente nos distrair diante de uma estrutura harmoniosa, que poucas vezes evoca as paixões de Beethoven ou o lirismo, às vezes sombrio, de Mozart. Eis outra sina do compositor: não apenas bem-humorado, Haydn era genuinamente feliz.
Pobre Haydn! Tinha, para resumir, duas qualidades que haverão de afastá-lo sempre do público mais amplo. Felicidade, sem dúvida; e outra, que talvez no fundo seja sua irmã: o gosto quase matemático pela razão. Ainda que sua música goste demais da brincadeira, e mesmo da palhaçada, não há compositor mais intelectual, mais cerebral do que ele.
Uma sonata para piano expõe, secamente, alguns elementos melódicos. Nada do balé mozartiano, das intensidades de Beethoven. Outro tema se sucede. É preciso um bocado de treino para entender, mais tarde, o que Haydn foi capaz de fazer quando a sonata termina, repleta de novas combinações e vidas a partir do magro material de que partiu.
O fato é que não gostamos muito de racionalidade na esfera estética. Claro que, nesse aspecto, tanto Mozart quanto Beethoven não ficam nada a dever a Haydn. Mas é uma burrice (da qual participo na maior parte das vezes) ignorar Haydn, o mestre de ambos, num campo que faz da música algo mais do que um simples deleite sentimental, e sim uma das mais altas expressões do intelecto humano.
coelhofsp@uol.com.br"
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