Amigo internauta,
O último elemento básico de uma composição musical que é fruto direto das características do som e que vamos abordar é o timbre.
Todo som tem uma "cor" distinta, uma personalidade própria. É graças ao timbre do som que podemos reconhecer a voz de um amigo no telefone ou o ruído do carro de um parente.
O som, na natureza, é composto por várias frequências simples e períodicas que, por serem representadas num gráfico da mesma forma que uma função seno, são chamadas de ondas senoidais. Além disso, para emitir um som é preciso que haja uma colisão entre objetos distintos. Por fim, cada corpo tende a emitir algumas dessas ondas senoidais com mais facilidade que outras. A interação entre a intensidade de cada onda senoidal, o ruído da colisão entre os corpos, e quais dessas ondas têm mais facilidade de vibrar naquele corpo determinam o timbre, a personalidade única daquele som.
Por muito e muito tempo a música ocidental só se preocupava com as notas, e o timbre com que os sons eram tocados tinham pouca importância. Contanto que um intrumento pudesse tocar as notas que o compositor escreveu, isso bastava.
A partir do século XVII vemos o ínicio da preocupação com o timbre das notas numa composição musical. Ainda assim, podemos verificar que havia uma atenção maior com a obtenção de efeitos sonoros que nem todo instrumento é capaz de fazer, que com o timbre propriamente dito. Ou seja, se um outro instrumento fosse capaz de tocar aquele efeito (como imitar o canto de um pássaro), isso bastava.
Por exemplo, abaixo temos o vídeo de duas interpretações do primeiro movimento da Primavera, de Antonio Vivaldi (1678-1741). Vamos ouvir timbres diferentes, mas o espírito da composição, que é mostrar a beleza da chegada da primavera, a alusão a cantos dos pássaros, está presente nas duas versões.
A partir do século XIX começa uma busca incessante por dominar melhor o timbre, e levar o trabalho com essa característica do som à mesma meticulosidade que com outras. É a partir daí que começamos a encontrar composições em que mudar os timbres destrói a composição tanto quanto mudar as notas.
Entre os músicos que iniciaram essa busca citamos Maurice Ravel (1875-1937). Gostaria de falar da sua orquestração do Quadros de uma Exposição, obra de Modest Moussorgski (1839-1881). Por orquestrar chamamos o ato de adaptar uma composição para orquestra, um trabalho cuja essência é lidar com o timbre. Nessa orquestração, Ravel transforma a música de Moussorgski numa outra obra de arte - sem mudar uma nota. Abaixo vamos ouvir um trecho dessa composição, primeiro na versão original e em seguida a orquestração de Ravel.
Outro trabalho de destaque é sua composição Bolero. Inicialmente considerado pelo compositor um mero exercício de orquestração, essa música repete incessantemente o mesmo ritmo, a mesma harmonia, a mesma melodia, e tem como único elemento de variação a mudança de timbre. Ainda hoje parece um desafio inalcançável pra um compositor escrever uma música com cerca de 15 minutos que repita a mesma melodia, varie apenas o timbre e não soe chata. Ravel conseguiu isso mesclando instrumentos diferentes, criando sonoridades nunca antes ouvidas, com um domínio do timbre tão surpreendente que encanta a todos.
O século XX inicia encantado com essa nova dimensão do som. Pra muitos compositores, é como se uma porta para o infinito fosse aberta. Anton Webern (1883-1945), assim como Ravel, também tem entre suas principais obras a orquestração de uma obra de outro compositor. Vamos ouvir o Ricercar a 6, da Oferenda Musical, composta por Johann Sebastian Bach (1685-1750) primeiro ao cravo, e em seguida a orquestração de Webern.
Uma coisa interessante a observar da orquestração de Webern é que ele muda a instrumentação ao longo de uma mesma melodia, enquanto em Ravel uma linha é tocada pelo mesmo instrumento do começo ao fim. Essa fragmentação da melodia por meio da mudança de timbre é, ao meu ver, um equivalente aos quadros de Pablo Picasso. Em suas Cinco Peças para Orquestra podemos ouvir essa característica de forma mais intensa.
Com o advento da tecnologia de gravação e da geração de sons em computadores, esse novo universo não parecia ter mais fim. Em outra mensagem podemos abordar um pouco essa fascinante história da música com a tecnologia, que se inicia com um sonoplasta que trabalhava para um estúdio de cinema e chega aos DJs dos dias atuais. Um compositor que se dedicou a dominar esse universo, e ainda hoje é referência para diversos músicos foi Edgar Varèse (1883-1965). Abaixo temos um vídeo com sua composição Poema Eletrônico, feita com sons manipulados por computador, e imagens do arquiteto e urbanista francês Le Corbusier (1887-1965).
Esse novo mundo era fantástico, porém parecia pouco humano. Não só os sons não são produzidos pelo ser humano, mas um concerto com uma composição como essa teria no palco apenas um aparelho de som. Alguns compositores buscaram uma solução para o impasse entre descartar esse novo universo e manter a música como uma forma de comunicação humana, com o envolvimento de seres humanos. Karlheinz Stockhausen (1928 - 2007) parece ter encontrado uma ótima solução na sua grandiosa composição Gruppen.
Outros compositores, como Leo Brouwer (1939-) conseguiram encontrar uma solução mesmo escrevendo para um único instrumento, como podemos ouvir na sua composição La Espiral Eterna. Brouwer quis representar nessa obra o surgimento e o fim do universo, como um ciclo em que o fim é um novo começo.
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