Amigo internauta,
Vez ou outra alguém me faz essa pergunta fascinante e ameaçadora. A cada nova reflexão me sinto como uma toupeira num buraco que sempre cava, cava, sem jamais encontrar a luz do sol, mas acaba descobrindo nas entranhas da terra coisas tão ricas que achar um raio de luz não parece mais tão importante.
Há uma passagem na Bíblia que acho fantástica: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dele" (João 1:1-3).
Uma das coisas que mais me intrigam nessa passagem é que ela é o começo do Evangelho de São João. Ora, nos evangelhos é pra ser narrada a vida de Jesus Cristo. Por quê iniciar com uma descrição da criação do mundo? Será que é porque a narração que conhecíamos precisava ser melhorada?
Outra coisa fantástica é que ela fala que Deus era o Verbo, que a linguagem é a própria divindade. E foi por meio da linguagem que se fez o mundo. Ou seja, há uma linguagem que é o próprio Deus, e essa é a linguagem responsável pela criação de todas as coisas.
Como seria essa linguagem criadora? Isso talvez esteja acima da compreensão humana. Porém, vendo o mundo podemos ter uma ideia de como ela seria. E o mundo é um sem-fim de relações, proporções, razões... A natureza é um grande compêndio de geometria e aritmética. Mas não há por aí relações quaisquer. Um flor não tem seis pétalas, terá cinco, oito ou outro número da sequência de Fibonacci.
Toda linguagem que o homem faz com intenção de recriar o mundo acaba tendo mais homem que mundo, distorcendo a criação divina. Um candelabro com seis lâmpadas não usa relações que vemos na natureza. As pinturas e as esculturas "corrigem" as proporções da fauna e da flora. A arquitetura muitas vezes é construída a partir de quadrados, enquanto no mundo dominam os círculos, os triângulos e os hexagonos.
A linguagem verbal é ainda pior, pois ela é precisa na hora de comunicar as idéias e criações do homem, mas imprecisa pra dizer as coisas do mundo. Quando olho um avião e escrevo a palavra correspondente, a imagem que a maioria das pessoas terão na sua mente será exatamente a mesma imagem que vi. Já quando olho uma árvore e escrevo essa palavra, é possível que nenhum leitor pense numa imagem semelhante à que olhei. É preciso criar toda uma nomenclatura complicada, acessível a poucos, pra conseguir um efeito similar. Só quando escrevo Mangifera indica é possível encontrar um número de leitores que imaginam o mesmo que vi, na mesma proporção que encontro ao escrever uma palavra simples como avião.
Acredito que a música seja o mais próximo que o homem chegou dessa linguagem que criou o mundo. Toda a linguagem musical está baseada na relação dos sons, e esta proporção apresenta diversas semelhanças com as que vemos na natureza. Além disso, a música tem a rara capacidade de tocar o intocável, falar do indizível, atingir a essência das coisas, de ir além do mundo visível, algo que só a divindade tem o poder de fazer. A música seria, portanto, o que o homem tem de mais próximo desse Verbo que não só criou o mundo, mas é o próprio Deus.
Apesar de ser uma boa explicação, amigo internauta, não responde a pergunta inicial, e não diz nada do que é música pra mim. A verdade é que a resposta mais verdadeira a essa questão é exatamente a menos poética: a única forma que posso definir música, pra mim, é falando das minhas experiências e da minha vivência com a música. Ao fazer isso, não estou tratando de música, mas de mim. E sou apenas um homem, enquanto a música é algo tão grandioso e fantástico que só vale a pena falar de música.
É assim que acredito que estaremos sempre mais próximos desse Verbo, dessa transcendência que, na nossa cultura, chamamos de Deus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário